Moreno, o criador do psicodrama, percebeu ainda no início do século XX que tanto os indivíduos quanto as estruturas sociais necessitavam de ajuda. Desenvolveu as bases filosóficas para uma ação transformadora do ser humano inserido em seu ambiente sociocultural, apoiado na convicção de que a criatividade poderia maximizar o potencial individual e coletivo.
Porém, com a mudança paradigmática do final do século, a sociedade passou a conviver com o imprevisível, perdendo a tranquilidade dada por parâmetros de certeza. Esse novo modelo confirmou as bases filosóficas do psicodrama, ao considerar que todo conhecimento resulta do intercâmbio social e, portanto, da interdependência das pessoas. Ao negar a possibilidade de uma verdade, contudo, validou outras bases epistemológicas, o que revolucionou as ciências de um modo geral, as ciências sociais e a psicologia.
Todos os domínios do conhecimento têm como eixo comum o paradigma da pós-modernidade, concluiu Marilene Grandesso (2000) após estudar várias vertentes teóricas da contemporaneidade. A autora identificou a ênfase na relação terapêutica como o marco referencial pós-moderno. Em sua concepção, o Homem é um ser imerso numa trama de significados que ele próprio constrói no convívio e no diálogo com outros. A psicologia da pós-modernidade valoriza o singular, o idiossincrático e o contextualmente situado. Não busca fatos, mas os significados construídos na relação entre as pessoas. Neste novo padrão, o psicólogo é um agente de transformação social, consciente de sua autorreflexidade e de que suas práticas e seus métodos de estudo não são ideologicamente neutros.
Essas colocações fundamentam teoricamente o mais atual nas psicoterapias, também um pressuposto fundamental do psicodrama, que é a concepção do vínculo terapêutico como uma experiência criativa e transformadora, em que os envolvidos na experiência são coconstrutores da mudança. Implica a abertura do psicodramatista para buscar novos olhares sobre sua prática, integrando dados levantados pela pesquisa interdisciplinar em diferentes campos do conhecimento.
Uma das áreas que tem trazido contribuições para a psicoterapia é a neurociência. No psicodrama, Rojas-Bermúdez e seus seguidores foram pioneiros na utilização desses estudos científicos. Tais contribuições, que foram apresentadas em capítulos anteriores, vêm sendo confirmadas pelos estudos mais recentes da neurociência e fazem parte do arsenal teórico-prático do psicodramatista contemporâneo.
A neurociência desempenhou um papel importante na psicanálise ao trazer a constatação de que a interpretação, ligada ao sistema explícito de memória e aprendizagem, poderia não ser transformadora. O reconhecimento da importância da condição nomeada de presentidade (Stern, 2007), defendida pelos estudiosos da neurociência como condição essencial para trabalhar com o sistema implícito de aprendizagem e memória, somado a outras contribuições, têm sido fundamentais no desenvolvimento de novos referenciais para essa abordagem.
Não poderíamos deixar de apontar que essa condição de presentidade, abordada na Introdução deste livro, é um dos pressupostos básicos do psicodrama. O pioneirismo de Moreno nos colocou na vanguarda, nesse aspecto, como modelo psicoterápico que valoriza a experiência vivida no aqui e agora.
Porém, considerando a promoção do desenvolvimento emocional como objetivo principal da psicoterapia psicodramática, a mudança paradigmática do século passado trouxe alguns desafios para o psicoterapeuta contemporâneo.
Uma psicoterapia bem-sucedida é aquela que favorece a transformação, decorrente de um movimento evolutivo propiciado pelo acesso e expansão dos conteúdos ainda não conhecidos. Porém, os aspectos mais desfavoráveis da pós-modernidade refletidos na sociedade atual – como a dificuldade em lidar com a dor, a dificuldade de interiorização, a busca de soluções prontas, imediatas, vindas de fora – podem contaminar o objetivo da psicoterapia, que passaria lamentavelmente a visar apenas ao alívio da ansiedade e à melhora dos sintomas (Fleury, 2007).
Almeida (2006) lista quatro grupos de métodos conhecidos para a investigação própria das psicoterapias: explicativo-causal (das evidências clínicas), cognitivo-comportamental, psicanalítico e fenomenológico-existencial. Enfoca o psicodrama como método fenomenológico-existencial, que busca superar o subjetivismo do método do conhecimento popular (vulgar) e o objetivismo do método do conhecimento científico (tradicional). Nessa proposta, ser e fenômeno estão vinculados, sendo necessário considerar três processos próprios da inter-relação: a intencionalidade, a intuição e a intersubjetividade. Destacamos sua afirmação de que o psicodramatista faz a fenomenologia da intersubjetividade e que o fato de que, por ser aberto, esse método permite “acompanhar um mundo em movimento com regras que impedem a cada um participação autoritária ou irresponsável” (Almeida, 2006, p. 39).
Assim, a fim de lidar a cada dia com um ser humano diferente inserto num ambiente em contínuo movimento, muitas vezes apresentando um empobrecimento da vida emocional, o psicodramatista precisa ter muita clareza dos fundamentos filosóficos do método psicodramático, base para a ativação dos mecanismos terapêuticos nessa abordagem. A neurociência traz novos elementos para reconhecermos fenômenos próprios da intersubjetividade e da subjetividade humana, que serão abordados mais a frente.
Um outro desafio é otimizar o enfoque dialógico da prática psicoterápica, que define a corresponsabilidade do psicoterapeuta e do cliente em relação ao resultado do trabalho. Implica referenciais claros para a compreensão dos aspectos psicopatológicos do cliente, assim como um aprofundamento das bases científicas da dimensão relacional do psicodrama.
A teoria do núcleo do Eu de Rojas-Bermúdez (apresentada no capítulo 3) detalha o mecanismo envolvido na formação do psiquismo da criança, que tem sido um dos mais importantes referenciais para o diagnóstico psicopatológico psicodramático.
A neurociência vem trazendo importantes elementos referentes à constituição de padrões relacionais na criança, explicitando a base fisiológica de fenômenos mentais e, portanto, da intersubjetividade (apresentados nos capítulos 1 e 2). Descreve também o mecanismo de autorregulação de afetos, que acrescenta importantes contribuições para o relacionamento e mudança terapêuticos. Pelo aspecto dialógico da prática psicoterápica, auxiliam o psicoterapeuta a refletir sobre as implicações do próprio desenvolvimento psíquico na amplitude de sua atuação com o cliente, na medida em que pode ser um fator limitante em sua prática clínica. No que concerne ao psicodramatista, a atualização de novas descobertas relativas à dimensão relacional do psicodrama poderá ser um importante referencial para uma atuação transformadora.
Em relação aos mecanismos terapêuticos do psicodrama, Rojas-Bermúdez trouxe importantes contribuições, dentre elas o conceito de imagem psicodramática e a técnica de construção de imagens (apresentados no capítulo 4). Fundamentam-se na neurociência, cujos estudos apontam condições necessárias para a integração neuropsicológica.
Com essas considerações, salientamos que um psicodrama transformador implica a convergência de olhares sobre alguns aspectos da prática clínica reconhecidamente relacionados com a mudança terapêutica. Eles serão abordados numa perspectiva das evidências trazidas pela neurociência. São eles:
- A base fisiológica do mundo mental e a dimensão relacional do psicodrama
- Relacionamento terapêutico e o mecanismo de autorregulação de afetos
- Contexto dramático e a operação dos mecanismos terapêuticos
- Neuroplasticidade e integração neuropsicológica
A base fisiológica do mundo mental e a dimensão relacional do psicodrama
Os modelos atuais para compreensão do Eu baseiam-se na integração de dados psicológicos e biológicos. Há um consenso crescente de que a origem do Eu deve ser explicada considerando-se as complexidades da psicologia do desenvolvimento e da neurociência do desenvolvimento. Levando em conta que os processos afetivos representam a essência do Eu, a ontogênese da mente humana envolve mais do que a emergência de cognições cada vez mais complexas. Pela natureza psicobiológica desses fenômenos, as teorias atuais de desenvolvimento humano estão buscando modelos que contemplem os mecanismos cérebro-mente-corpo (Schore, 2003).
Rojas-Bermúdez desenvolveu uma compreensão do desenvolvimento do Eu (também apresentada no capítulo 3), baseada na concepção de que as estruturas cerebrais vão se desenvolvendo a partir da mediação externa. Suas considerações relativas à estruturação do psiquismo, apresentadas em várias oportunidades ao longo deste livro, têm sido confirmadas pela perspectiva interpessoal da neurociência atual.
Moreno (1975) considerou o homem um ser em relação, dotado de espontaneidade e tele para seu desenvolvimento emocional. Definiu essa dimensão relacional afirmando ocorrer uma coexistência, co-ação e coexperiência na interação da criança com sua matriz de identidade, caracterizando o processo infantil de aprendizagem emocional. Nesse locus, segundo ele, desenvolvem-se os primeiros padrões relacionais, que tenderão a se manter ao longo da vida, expressos por intermédio dos papéis.
Identificou o primeiro reflexo social na criança no momento em que se inicia o desenvolvimento do sentido de proximidade e distância, gerando atração ou afastamento de pessoas e objetos. Relacionou essa reação social ao aparecimento do fator tele, que passará a ser o núcleo dos padrões de atração e de afastamento, das emoções especializadas, ou seja, das forças sociais que atuarão no indivíduo (Moreno, 1975, p. 119).
Essa dimensão relacional foi confirmada, entre outros estudiosos, por John Bowlby (2002), criador da teoria do apego. Postulou que o vínculo criança–mãe ou cuidador é essencial no desenvolvimento infantil e que o apego saudável é dependente da experiência de sintonia nesse vínculo. Formam-se “modelos de trabalho interno” não conscientes que mantêm a função de script ou padrão para a criança moldar as próprias emoções e a percepção de outros.
A criação de um sistema de comunicação, caracterizado por olhares mútuos interativos, foi ratificada por Tronick (1989), pelos estudos observacionais da interação mãe–criança. Essa troca de olhares tem uma intensidade e sincronicidade que caracteriza um sistema recíproco de comunicação – a rapidez da coordenação das respostas sugere um mecanismo inconsciente. Essa experiência de mutualidade, alternada com momentos de desencontro e ruptura, favorece a regulação recíproca de afetos e leva a um sentimento de conexão com o cuidador, além de auxiliar a criança a construir significados no relacionamento. Esse processo é mediado pelo sistema ainda em desenvolvimento de neurônios-espelho da criança –central para a construção de significados –, preparando-a para entender a ação de outros, desenvolver empatia e compreender as intenções alheias, conforme detalhado no capítulo 2.
O cérebro social tem como estruturas neurológicas a amígdala, o cingulado anterior, a área orbitofrontal do córtex pré-frontal e a porção frontal do lobo temporal. Essas estruturas expandiram e constituíram uma rede neural em decorrência de informações sociais e emocionais necessárias para a sobrevivência do ser humano (Cozolino, 2002).
Segundo esse autor, é nesse sistema neural que as experiências precoces de relacionamento interpessoal são organizadas, formando os padrões de apego descritos por Bowlby. São memórias implícitas de procedimento que refletem memórias sensórias, motoras, afetivas e cognitivas das experiências de cuidados. Essas redes de memórias são evocadas nas experiências interpessoais durante a vida, levando o ser humano a se aproximar ou se afastar de outros em função de informações contínuas e inconscientes relativas a decisões de aproximação ou evitação. Dessa forma, expressam-se na escolha de pessoas próximas, na qualidade dos relacionamentos, assim como desencadeiam muitas crises pessoais e conjugais.
O autor levanta também o aspecto de que esse relacionamento com o cuidador transmite à criança as primeiras impressões sobre o ambiente físico e cultural, modelando-se nesse relacionamento íntimo as redes neurais relacionadas a sentimentos de segurança e perigo, apego e o sentido de si-mesmo. Pela intensidade maior do crescimento e organização de neurônios nessa etapa inicial da vida, tais experiências interpessoais precoces tornam-se mais influentes do que as posteriores. Suas características visceral e pré-verbal as torna mais resistentes às mudanças, caracterizando-se, portanto, como um importante desafio para o psicoterapeuta.
Estabelecendo paralelos entre esse sistema precoce de vinculação com o cuidador e a relação terapêutica, Schore (2003, p. 264) sintetiza diversos estudos para concluir que, nas transações afetivas da dupla terapeuta–cliente, ocorre a cocriação de um contexto intersubjetivo que leva a expansões estruturais no cérebro e novas conexões, favorecendo a regulação de afeto, processamento de interações cognitivo-emocionais e significados relacionados ao mundo emocional.
Esse autor identifica um estado de ressonância quando a subjetividade do terapeuta fica empaticamente sintonizada ao estado interno do paciente, que pode ser inclusive inconsciente. A ressonância na interação pode intensificar e aumentar a duração do estado afetivo da dupla. Reconhece que o fenômeno de ressonância desempenha um dos papéis mais importantes na organização cerebral e no processo de regulação do sistema nervoso central.
Cozolino (2002) destaca que a neurociência nos ajuda a entender como as experiências interpessoais precoces constroem e modelam o cérebro, frisando que a psicoterapia atua na criação de uma matriz interpessoal capaz de reconstruí-lo. Concluímos assim que o conhecimento dos mecanismos subjacentes ao funcionamento mental, que envolve tanto aspectos subjetivos como também outros mais objetivos que vêm sendo revelados pela neurociência, podem trazer novas e surpreendentes contribuições para a intervenção psicoterapêutica.
Relacionamento terapêutico e o mecanismo de autorregulação de afetos
Segundo Moreno, tele “é empatia recíproca” (1994, p. 159), que “opera em todas as dimensões da comunicação” (1994, p. 178), podendo ser entendida como o “fator sociogravitacional que opera entre indivíduos, induzindo-os a formar relações de par, triângulos […] mais positivas ou negativas do que por acaso” (1975, p. 135). Essas definições explicitam a aproximação intuitiva de Moreno com as evidências atuais da operação de um sistema de neurônios-espelho no cérebro, desde o início da vida social, favorecendo a criação de um espaço intersubjetivo (vide capítulo 2).
Para a criança, a experiência de rompimento na sintonia com o cuidador, havendo um retorno breve da conexão, leva ao amadurecimento e a uma autonomia progressiva, preparando-a inclusive para manter-se ligada ao ambiente mesmo em situações de estresse (afetivamente negativas ou situações novas). Por outro lado, havendo repetição de experiências negativas, pode desenvolver um estilo autodirigido de comportamento regulatório, tal como virar-se, evitar, ou ficar visivelmente não disponível. Essas estratégias parecem ter a finalidade de controlar o afeto negativo (Tronick, 1989).
A teoria do apego pode ser considerada uma teoria de regulação (Schore, 2001a). A mãe/ cuidador, num vínculo de apego seguro, está continuamente regulando os estados emocionais do bebê, numa sintonia não consciente e intuitiva às mudanças nos níveis de excitação da criança. Participa tanto dos momentos de interação mútua como daqueles em que a sintonia é rompida, gerando estresse no bebê. A reparação deve ocorrer na interação a fim de que a pronta autocorreção do desencontro garanta regulação sintonizada numa dimensão psicobiológica, favorecendo ao bebê sua própria regulação do afeto negativo. Esse processo depende, evidentemente, das condições do cuidador para identificar e regular seu próprio afeto, especialmente o negativo. Em decorrência dessa exposição às capacidades regulatórias do cuidador, as habilidades adaptativas do bebê para avaliar a cada momento mudanças estressantes no ambiente externo, especialmente no ambiente social, começam a formar respostas coerentes na abordagem desses estressores (podem ser experiências dolorosas ou situações novas). Assim, a expansão da capacidade de lidar com novas informações e, portanto, mover-se em direção a uma complexidade crescente envolve a capacidade de relacionar-se não apenas com o familiar, mas também abordar, tolerar e incorporar a novidade.
Nos casos em que a ruptura da ligação de apego é intensa, Bowlby (2002) identificou respostas de protesto e desespero na criança. Perry, Pollard, Blakely e Vigilante (1995) identificaram dois padrões de resposta psicobiológica da criança ao trauma, correspondentes a essas formas extremas de resposta ao afeto negativo: hiperexcitação e dissociação. No início da situação ameaçadora, representada pela ruptura do vínculo, ocorre uma reação de alarme (hiperexcitação) e a resposta de aflição (choro seguido de gritos). Esta comunicação do afeto negativo tem também a função de busca da regulação interativa. Concomitantemente, hormônios são liberados produzindo aumento nos batimentos cardíacos, pressão arterial, respiração, tônus muscular, resultando em hipervigilância. A criança pode, porém, formar uma segunda categoria de reação, que tende inclusive a ter uma duração mais longa, ao desligar-se dos estímulos do mundo exterior, sintonizando apenas em seu mundo interno. Crianças traumatizadas, segundo Schore (2001b), ficam olhando para o espaço com um olhar congelado. Essa dissociação frente ao medo ou ao terror envolve inibição do comportamento, paralisia, evitação, conformidade e diminuição do afeto, o que é mediado por altos níveis de liberação de substâncias no cérebro.
Esse processo primitivo de regulação se dá em situações de desamparo e desesperança, nas quais o indivíduo está hiperinibido, permanecendo imóvel para evitar chamar atenção sobre si, como se tentasse tornar-se invisível. Permite à criança manter sua homeostase diante de um estado interno de excessiva hiperexcitação. Resulta no estado de consciência reduzida característico da dissociação (Schore, 2001b). Shaddock (2000) acrescenta que, frente a esse afeto excessivo, não ocorrendo a resposta sintônica do cuidador que ajudaria a tolerá-lo, a criança defensivamente pode cindir o afeto traumático, pelo desenvolvimento de crenças irracionais, sentindo-se sem valia ou merecedora da dor.
Schore (2003) afirma que, na vida adulta, o comprometimento do mecanismo de autorregulação de afetos tende a limitar a capacidade de modular a intensidade e duração dos afetos, especialmente aqueles mais primitivos, como a vergonha, raiva, excitação, euforia, desgosto, pânico-terror, desamparo-desespero. Esses indivíduos, diante do estresse, tendem a apresentar estados difusos, indiferenciados, caóticos, acompanhados por sensações somáticas e viscerais excessivas; além de uma habilidade diminuída para refletir sobre o próprio estado emocional.
Porém, quando o comprometimento foi mais sério, caracterizando experiências precoces de trauma, a ausência de uma resposta sintônica no relacionamento amoroso pode recriar o contexto traumático e acionar defesas primitivas. As estruturas defensivas e crenças patológicas (geralmente inconscientes) resultantes das tentativas da criança para regular os afetos traumáticos por si própria originam dificuldades para a vida toda (Shaddock, 2000). Segundo esse autor, nos relacionamentos amorosos manifestam-se por alguns padrões desastrosos: dissociação (não considera as necessidade ou vulnerabilidades de um ou dos dois); concretização (atribui a dor a determinados incidentes, que passam a representar a única origem do sofrimento); projeção (identifica no parceiro a fonte de todos os problemas, passando a mobilizar todos os recursos contra ele e não reconhecendo em si próprio os afetos desestabilizantes); pessimismo defensivo (regula o afeto permanecendo em estado crônico de retração dos sentimentos, resistindo a expor suas necessidades ou a reconhecer as necessidades do outro); dúvida crônica (levanta sentimentos que criam dúvida sobre a legitimidade ou realidade de suas necessidades, às vezes estado de irrealidade); alienação profunda (estados de estranhamento e solidão).
O psicoterapeuta empático e intuitivo psicobiologicamente sintoniza-se e cria ressonância com os estados afetivos em mudança no paciente. Baseando-se nas evidências de que o sistema afetivo não verbal da criança continua operando ao longo da vida, Shaddock destaca a importância das comunicações não verbais entre terapeuta e paciente, expressas pelo tom de voz, expressão facial, postura corporal, muitas vezes sem acompanhamento consciente dos dois, mas provocando reações em ambos. Dessa forma, ocorre a cocriação de um contexto no qual o psicoterapeuta pode agir como um regulador dos estados fisiológicos alterados.
Stern (2007) denominou intersubjetividade terapêutica essa condição de sintonia. Articula as dimensões explícita (domínio verbal) e implícita (imagens, sentimentos, intuições) da dupla paciente–terapeuta; uma dimensão deve ser transposta para a outra e vice-versa, integrando o explícito e o implícito. Chamou de matriz intersubjetiva esse diálogo cocriativo contínuo que o indivíduo mantém com outras mentes. Para ele, duas mentes criam intersubjetividade, ao mesmo tempo em que, num sentido inverso, esse campo influencia as duas mentes, confirmando o foco no intersubjetivo. Stern considera que essa troca ocorre continuamente entre o terapeuta e paciente, principalmente no domínio implícito, sem que o efeito terapêutico dependa da verbalização.
Essa condição de sintonia é muito próxima do que Moreno (1975, p. 30), ainda na primeira metade do século XX, definiu como estados coconscientes e coinconscientes, relativos àqueles vivenciados e produzidos conjuntamente pelos participantes de um grupo. Nessa definição, que tem sido mais detalhada pelos seus seguidores, intuitivamente afirmou algo que provavelmente será consenso num futuro próximo na área da psicoterapia.
Segundo Moreno (1983, p. 22), referindo-se ao relacionamento terapeuta–paciente, quando as percepções estiverem distorcidas e indicarem alguma referência a experiências anteriores, devem ser explicitadas no encontro terapêutico. Aludida à possibilidade de padrões relacionais ou padrões vinculares manifestarem-se nessa interação, o que hoje é praticamente um consenso entre os estudiosos dessa área. Manifestam-se também nos relatos feitos pelo paciente de outras interações. Na abordagem de relações problemáticas trazidas como queixa, esses padrões relacionais podem ser visualizados pela construção de imagens ou das cenas dramatizadas. Ao serem explicitados, podem facilitar a transformação numa dimensão implícita.
As evidências de que as condições maternas para lidar com os próprios estados afetivos influenciam os afetos que reconhece na criança, podendo estabelecer uma sintonia com eles, aplicam-se também ao relacionamento terapêutico. O psicodramatista também depende de seu próprio mecanismo autorregulatório, ou seja, de seus recursos para tolerar afetos intensos e por longos períodos, que são condições necessárias para desempenhar essa função com o cliente. Dessa forma, suas condições emocionais tornam-se essenciais no processo terapêutico. Precisa de um bom sistema de neurônios-espelho (ou uma boa tele sensibilidade) a fim de garantir um vínculo ativado, caracterizado pela compreensão do contexto relacional e sensível aos padrões relacionais da dimensão implícita, tanto no relacionamento terapeuta–paciente quanto naqueles explicitados nas imagens e cenas dramáticas. Evidentemente, não é necessário mencionar que essas condições são desenvolvidas na própria psicoterapia do terapeuta, assim como nas supervisões – imprescindíveis para o terapeuta menos experiente.
Contexto dramático e a operação dos mecanismos terapêuticos
Moreno valorizou a ação dramática como instrumento para comprometer o indivíduo e objetivar as inter-relações humanas. Essa ação presentificada no aqui e agora da experiência é o grande diferencial do psicodrama. Ocorre por meio da dramatização ou até mesmo do diálogo verbal.
A mudança terapêutica baseia-se na experiência da emoção compartilhada no relacionamento terapêutico, no aqui e agora e na ação dramática. A emergência de figuras de apego, bem como esse processo de ressonância mútua, mediado pelos neurônios-espelho, permitem a criação ou a recriação de novos modelos relacionais no domínio implícito (hemisfério direito), reestruturando padrões relacionais e reconstruindo novos significados.
Historicamente, a abordagem científica de Rojas-Bermúdez permaneceu no contexto ampliado do psicodrama. Exerceu grande influência na constituição do psicodrama brasileiro por ter participado da formação da maioria dos pioneiros da área em nosso país. Dentre as suas contribuições, uma que faz parte do nosso cotidiano é a distinção entre os três contextos: (a) contexto social – o meio social/cultural exterior ao grupo no qual os indivíduos estão vivendo; (b) contexto grupal – contexto do aqui e agora que se forma no grupo terapêutico, em que o aquecimento leva ao tema grupal e à emergência do protagonista; e (c) contexto dramático – referencial do “como se” do grupo, focado em um ou mais protagonistas, durante o processo de uma dramatização ocorrida no contexto da fantasia e da imaginação.
Acrescentando essa diferenciação de contextos aos outros elementos importantes da sessão de psicodrama propostos por Moreno (1975), Rojas-Bermúdez (1997, p. 34) sistematizou as três etapas: (a) aquecimento, (b) dramatização e (c) comentários ou análise; os três contextos: (a) contexto social, (b) contexto grupal e (c) contexto dramático; e os cinco instrumentos: (a) protagonista, (b) cenário, (c) egos-auxiliares, (d) diretor ou terapeuta, (e) auditório.
Na psicoterapia psicodramática, o aquecimento é o mecanismo utilizado para garantir essa condição favorável à operação dos mecanismos terapêuticos. Assim, quando o protagonista está para entrar no mundo da fantasia regressiva, a etapa da dramatização ou da ação psicodramática deve ser precedida por um aquecimento adequado. No trabalho grupal, garante algo essencial que é a segurança do ambiente continente do grupo.
Paul Holmes (1992) identifica no palco psicodramático o equivalente ao espaço potencial de Winnicott (1971). Esse espaço potencial, no mundo da criança, é especialmente ativo durante a evolução da linguagem e na aprendizagem, por meio da brincadeira, dos valores normativos da sociedade, originando a experiência cultural. Trata-se do espaço dentro do qual é negociado o relacionamento entre a realidade (principalmente a realidade consensual do grupo) e a fantasia/imaginação. Esse lugar pode favorecer o movimento em direção a um teste de realidade, sem com isso renunciar à fantasia e à imaginação. Dá sustentação às nossas necessidades de fantasias regressivas, porém com retorno seguro à realidade.
O espaço potencial do palco psicodramático é também um lugar de encontro entre os recursos do cérebro esquerdo e direito, tanto do protagonista como do grupo. Hug (2007) enfatiza que a fase da ação psicodramática envolve, num estado moderado de regressão, um encontro entre o cérebro dominante (esquerdo), que constrói narrativas e é a base da identidade declarativa, e o cérebro recessivo (direito), mais conectado à verdade do corpo, à memória emocional, às experiências precoces de vinculação e às experiências traumáticas, bem como à formação de imagens. É também um encontro entre imagem (cérebro direito) e palavra (cérebro esquerdo).
Hug (2007) baseia-se também na neurociência ao abordar o manejo das técnicas psicodramáticas. Segundo ele, para que a ação psicodramática atue tanto na memória corporal quanto na emocional, é necessário que o psicodramatista garanta um sistema de atenção integrado, balanceando recursos afetivos e reflexivos, assim como um foco maior em imagens ou sensoriais. Por exemplo, havendo o predomínio de racionalizações, ele deve utilizar as técnicas psicodramáticas (solilóquio, espelho etc.) a fim de trazer conteúdos mais emocionais, favorecendo que o hemisfério esquerdo fique mais inibido e deixando de boicotar a memória afetiva do hemisfério direito. Da mesma forma, havendo um excesso de emocionalidade, vai escolher a técnica capaz de trazer a distância necessária para aspectos mais reflexivos sobre a experiência.
Numa dimensão neuropsicológica, mudanças exigem um nível adequado de estresse. Cozolino (2002) afirma que o desenvolvimento e integração exigem um contexto em que acolhimento e estresse estejam balanceados. No desenvolvimento da criança, alterações nesse equilíbrio podem gerar sintomas, defesas pouco adaptativas e psicopatologia. No relacionamento terapêutico, essa é uma condição necessária do ambiente neurobiológico para o desenvolvimento e integração neural.
Quando o nível de estresse é muito alto, o hipocampo fica sobrecarregado e produz pouca integração. Se, por outro lado, é insuficiente, não ocorre mudança. Esse nível adequado de estimulação produz integração máxima e foi denominado janela de tolerancia (Hug, 2007).
Corresponde ao que Moreno (1994, p. 166) preconizou como processo de aquecimento para o indivíduo adequar-se para a realização de um ato. Caracteriza-se como a expressão operacional da espontaneidade (p. 150). Consta de iniciadores físicos, mentais, sociais e psicoquímicos (Moreno, 1975, p. 104) ou da utilização de catalisadores psicomotores ou mímicos; ou ainda de estimulantes psíquicos, como imagens, temas musicais, dança etc. (Moreno, 1993).
Essas constatações explicitam um dos grandes desafios para os modelos atuais de psicoterapia ao apontarem a necessidade do desenvolvimento de um conhecimento teórico e de estratégias metodológicas capazes de superar possíveis limitações da intervenção verbal, favorecendo a articulação entre os dois hemisférios.
Neuroplasticidade e integração neuropsicológica
Irvin D. Yalom, psicoterapeuta de grupo de orientação existencialista – nesse sentido com muitas aproximações com o psicodrama – e Molyn Leszcz (2006) consideraram que a efetividade da experiência grupal depende da integração de dois níveis: a vivência do aqui e agora e o esclarecimento do processo, sendo necessária a realização de um ciclo autorreflexivo para examinar o que ocorreu no aqui e agora. Se ocorrer apenas a vivência, será uma experiência intensa e envolvente, cheia de emoção; a falta da reflexão, contudo, impede a formação de um arcabouço cognitivo sobre ela. Nessas condições, não há retenção da experiência grupal, generalizações subsequentes, identificação e alteração do comportamento interpessoal e transferência da aprendizagem para a vida. Ocorrendo apenas a análise do processo, perdem-se a vivacidade e o significado da experiência. Yalom e Leszcz alertam que muitos terapeutas privilegiam o aqui e agora, esquecendo-se de sua função na ativação dessa segunda parte.
Um dos diferenciais das propostas de Rojas-Bermúdez é desencorajar a catarse de ab-reação como objetivo do trabalho terapêutico. Concorda com Moreno (1993, p. 350), que a considerou apenas um elemento parcial no processo de integração.
Rojas-Bermúdez (1984) visa preferencialmente ao insight, por meio da complementação mútua de elementos emocionais e intelectuais. Para esse autor, catarse de integração é a resultante final de uma série de processos inicialmente isolados, que, em determinado momento, se inter-relacionam produzindo algo único –diferente de cada um dos anteriores, considerando que essas experiências iniciais atingem sua finalidade máxima a partir dessa resultante comum a todas elas. Assim, o insight não é obtido pela catarse de ab-reação, mas pela complementaridade entre o trabalho intelectual (construção de imagens e compreensão diferenciada de seus elementos) e o trabalho emocional (ação e dramatização). Isto pode ser compreendido como uma interação complementar entre os recursos do cérebro direito (espacial, orientado para a imagem) e os recursos do cérebro esquerdo (temporal, verbal e orientado para a ação).
O palco psicodramático, nessa ação terapêutica, é muito semelhante ao espaço potencial descrito por Winnicott (1971), caracterizado como um espaço de criação, onde, no aqui e agora, a vivência da fantasia e o acesso à realidade criam as condições para que o insight possa ocorrer.
É importante o cuidado após a ação dramática, quando uma consciência mais verdadeira de si é percebida na ação. Se for muito diferente da consciência narrativa, pode ser vivenciado como estranha. Nesses casos, na etapa de compartilhamento, a ressonância no grupo pode auxiliar a integração dessa nova aprendizagem. No contexto bipessoal, a sensibilidade do terapeuta é necessária para uma efetiva ressonância a esses estados de estranhamento.
Espontaneidade e conserva cultural são conceitos interligados, sendo um função do outro (Moreno, 1975, p. 464). Moreno (1975, p. 175) conceituou conserva cultural como a matriz na qual uma ideia criadora é preservada e repetida, com uma função tranquilizadora.
Narrativas relacionadas às adaptações sociais tendem a se formar no hemisfério cerebral dominante, geralmente o esquerdo, diferentemente da formação de imagens internas, que ocorrem no direito. Para ajustar-se ao que parece ser a realidade do grupo e do contexto sociais, acontece uma racionalização e distorção da realidade interna, um mecanismo muito semelhante ao da conserva cultural (Hug, 2007).
Assim, aspectos mais conhecidos, conceituados como conserva cultural, localizam-se no hemisfério esquerdo, enquanto o envolvimento com a novidade refere-se ao direito. O estado de espontaneidade requer o uso dinâmico e balanceado dos dois hemisférios, exigindo a mobilização e intercâmbio entre eles (Hug, 2007).
A conexão entre os dois hemisférios ocorre através do corpo caloso, estrutura cerebral composta de fibras longas que ligam os dois lados. Esse mecanismo é mais bem detalhado no capítulo 3, na descrição da constituição do Eu integral. Não havendo recursos para essa forma de integração, acabam sendo “integrados” ou expressos pelo corpo. Caracterizam os sintomas psicossomáticos, compulsões ou comportamentos não regulados.
Tanto a neurociência como as psicoterapias consideram essencial, para um funcionamento saudável, níveis cada vez mais elevados de desenvolvimento e integração.
Numa dimensão neurológica, essa condição equivale ao desenvolvimento neuronal e à integração e comunicação das redes neurais relacionadas à emoção, cognição, sensação e comportamento. Segundo Cozolino (2002), a psicoterapia caracteriza-se por ser um ambiente rico, apropriado para favorecer o desenvolvimento de neurônios e a integração das redes neurais. Nesse contexto facilitador, o cliente é encorajado a tolerar a ansiedade própria das experiências temidas, memórias e pensamentos. Redes neurais normalmente inibidas ficam ativadas e disponíveis para serem inseridas no processamento consciente, ao longo de um processo caracterizado por ações tais como: dar informações relativas à compreensão das dificuldades apresentadas (por meio de psicoeducação, interpretações e/ou teste de realidade, dependendo da abordagem); estimular novos comportamentos, expressão de sentimentos e identificação de aspectos que podem ser desconhecidos, animando-os a correr riscos; transitar entre pensamentos e sentimentos, buscando novas conexões entre eles; ajudar a alterar a descrição do mundo e de si mesmos, a partir de uma ampliação de consciência, preparando-os para tomar decisões mais bem instrumentadas. No decorrer desse processo, os pacientes internalizam os métodos utilizados, ganhando independência cada vez maior.
Numa dimensão psicológica, integração refere-se à habilidade de lidar com os aspectos importantes da vida com facilidade de acesso aos recursos pessoais, o que Moreno (1975, 1994, p. 149) definiu como estado de espontaneidade. Trata-se do princípio essencial de uma experiência criadora. Surge de estados afetivos, como uma resposta a uma situação externa ou de condições internas. Opera no presente, no aqui e agora da experiência. Com o aquecimento, desenvolve-se em todo seu potencial e energia, levando o indivíduo a uma resposta adequada à nova situação ou a uma resposta nova para um situação conhecida. Pode motivar um processo interno ou uma relação externa social, correlacionando-se com o estado de espontaneidade de outra pessoa criadora.
Pelo fato de o cérebro ser um órgão orientado para a ação, Hug (2007) afirma que a integração ocorre na ação. As palavras podem ter limitações, porém o cérebro possibilita outras formas de expressão além da verbal. O conteúdo da sessão psicodramática envolve dinâmicas emocionais e aspectos mais racionais, assim como uma memória corporal e outra emocional. A ação psicodramática faz a ponte entre os dois hemisférios, favorecendo uma integração psicológica (mecanismo detalhado na parte teórica deste livro).
Uma das bases da abordagem científica de Rojas-Bermúdez é a noção de que o cérebro direito é o locus operandi para a formação de imagens simbólicas em resposta à experiência do mundo externo, e para a emergência de “imagens sensório-afetivas [… que] emergem de […] uma memória afetiva de procedimentos, implícita, de base corporal” (Schore 2003, p. 96). O capítulo 4 aborda a aproximação dos dois hemisférios por meio da fundamentação de Rojas-Bermúdez para o trabalho com a imagem psicodramática.
Os escritos neurológicos atuais consideram que o cérebro esquerdo é dominante para a maioria dos seres humanos. Na medida em que ele é o hemisfério cerebral que dá suporte à linguagem, deduzimos que domina o outro, relacionado à imaginação. Por outro lado, na maioria dos indivíduos destros, é no cérebro direito que se localizam as dimensões mais subjetivas do mundo mental, representadas pela memória implícita (relativa a coisas que sabemos, mas que podemos não saber que sabemos), pela memória corporal (inclui memórias traumáticas) e pela memória emocional (inclui memórias precoces da infância). Além disso, Schore (1999) reforça fortemente que as experiências precoces de vinculação, assim como seus distúrbios, estão relacionadas principalmente ao cérebro direito.
Embora os dois hemisférios de nosso cérebro tenham orientações diferentes, a saúde mental envolve tanto um relacionamento saudável entre eles quanto, principalmente na cultura ocidental – em que geralmente ocorre a dominância do hemisfério esquerdo linguístico –, a plena consideração dos traços de memória e das perspectivas do hemisfério direito.
Este encontro entre os dois hemisférios constitui a base interna (neurobiológica) do que Moreno definiu como encontro:
[ …]abrange diferentes esferas da vida. Significa estar junto, reunir-se, contato de dois corpos, ver e observar, tocar, sentir, participar e amar, compreender, conhecer intuitivamente através do silêncio ou do movimento, a palavra ou o gesto, beijo ou abraço, tornar-se um só – una cum uno. A palavra encontro contém como raiz a palavra “contra”. Abrange, portanto, não apenas as relações amáveis, mas também as relações hostis e ameaçadoras: opor-se a alguém, contrariar, brigar. Encontro é um conceito em si, único e insubstituível” (Moreno, 1993, p. 73).Numa perspectiva de que esse conceito se relaciona com a saúde, o encontro neurológico entre a consciência narrativa do cérebro esquerdo e a essência de consciência do cérebro direito gera a espontaneidade. Embora esse encontro possa ser experimentado com estranhamento pelo indivíduo, permite que emerja um nível mais profundo de integração do Eu, por incorporar aspectos essenciais da consciência que haviam sido excluídos da consciência narrativa.
O encontro moreniano consta de uma base interna biológica, expressa no nível mais alto da organização neural humana, como um encontro entre nossos hemisférios esquerdo e direito, num processo provavelmente mediado pelos neurônios-espelho.
Recomendações para o psicodramatista contemporâneo
Muito do que poderíamos considerar diretrizes já foi apresentado anteriormente. Complementamos esse material então com algumas recomendações para a mudança terapêutica:
- Formular um projeto terapêutico adequado ao nível de desenvolvimento emocional do cliente.
- Criar um espaço intersubjetivo que garanta sentimentos de segurança e confiança, visando recriar padrões relacionais fundados na percepção de si como alguém eficaz e do outro como confiável.
- Favorecer níveis cada vez mais altos de tolerância e regulação de afeto, por meio da ativação simultânea ou alternada de redes neuronais que estão inadequadamente integradas ou dissociadas, permitindo níveis moderados de estresse ou excitação emocional alternados com períodos de calma e segurança.
- Considerar o psicodrama na categoria de método fenomenológico-existencial, permanecendo aberto à identificação dos padrões relacionais implícitos presentificados na intersubjetividade terapêutica, garantindo a integração da cognição, emoção, sensação e comportamento. Atentar para a categoria do momento, que traz um caráter vivencial à experiência, favorecendo a reaprendizagem implícita.
- Buscar o desenvolvimento de cenas dramáticas, a construção de imagens ou narrativas integrativas coconstruídas.
- Considerar a necessidade de desenvolvimento de habilidades para processamento e organização de novas experiências, a fim de dar continuidade ao crescimento e à integração fora da terapia.
Perspectivas futuras
Moreno (1975) afirmou que a obra de arte dada ao conhecimento público tem uma forma aparentemente permanente e finalizada, salientando, porém, que o processo de criação é o mais importante na experiência humana. Ao tentar aproximar sua obra de um ideal de perfeição, o autor não dá a conhecer as primeiras formas criadas, embora elas compartilhem a mesma inspiração do estágio final.
Este livro é uma obra de arte, ainda em seus primeiros estágios. Traz à luz alguns paralelos entre a profícua obra de Moreno, as contribuições de Rojas-Bermúdez e as evidências mais atuais da neurociência. Os próximos estágios serão coconstruídos pelos psicodramatistas contemporâneos. Duas das instituições federadas veteranas da Febrap – Federação Brasileira de Psicodrama, o DPSedes – Departamento de Psicodrama do Instituto Sedes Sapientiae e a Asbap – Associação Bahiana de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo, foram convidadas para liderar a continuidade desse diálogo.
Desejamos um profícuo processo, com a esperança de que jamais a obra seja finalizada, garantindo que o Psicodrama continue em processo de recriação, conduzido por nós e pelas próximas gerações de psicodramatistas brasileiros.
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